24.5.06

O mar sobe, o leão ruge


As sebes procuram manter a areia, conservar as dunas, na praia do Norte, em Peniche. Todos os anos as praias se tornam mais pequenas em Portugal. Raizes à mostra, areais levados pelas ondas. É apenas a geografia que se altera - mais aqui, menos acolá - dizem os optimistas. Claro que não é nada disso. Derretem os polos, sobe o mar. A velocidade a que o Homem conseguiu alterar o percurso normal da natureza nos últimos cem anos é impressionante. Se a evolução natural não é a favor da sobrevivência da nossa espécie - «el ninos», deslocações do percurso previsto à volta do sol, o eventual meteorito em rota de colisão - a forma como interferimos cria tantas adversidades que talvez precipitemos o fim. Não sei se cá fazemos muita falta e pouco me interessa esse fim moral, o «portaram-se mal, tomem lá a paga».
De qualquer modo ficaremos para último. Primeiro vão os mais fracos... os animais, e isso sim faz-me objecção.
Como será um mundo sem leões? Lembro-me de ver um a dois metros, pachorrento, abrindo a bocarra de tédio de barriga cheia, enquanto me avaliava com o olhar amarelo. Leões 3D, o video do Lion King e algumas reportagens de arquivo do National Geographic farão as vezes do bicho. A diferença nem será notada por quem nunca esteve na natureza ao pé de um (com um guia agarrado ao braço a dizer, «Não saí do carro, está a ouvir!», porque achava que queria puxar os bigodes ao felino da mesma forma que pus a manada de elefantes a fugir porque saltei para a frente do chefe - uma boa foto vale um ataque de nervos de um paquiderme ou a vida do fotógrafo).
O holograma do leão, pelo menos, não morde, diremos nós, então.
As espécies que vierem depois de nós - e dos leões - interessar-se-ão mais pela maneira como as leoas tomavam conta dos filhos umas das outras enquanto os leões papavam os filhos dos outros ou pelas histórias para crianças em que o leão e a zebra iam ao circo de mão dada? Pelo cio das gatas ou pelos poemas eróticos humanos? Se restar vestígio disto...
Às vezes gostava de estar na praia de Peniche e começar a ver o mar subir, subir, derrubar as sebes de canas, submergir as dunas, a península, o Parque Eduardo VII, as Petronas, o Hong Kong Bank, o Monte da Guia em Macau, o belo Empire State Building, os Himalais a Pousada de Maubisse e outros sítios altos onde estive. Deve ser belo presenciar o fim de uma raça, de um mundo.
Não terei a sorte dos meus sobrinhos netos - resta-me, portanto, preparar-me para o meu próprio e solitário fim - com o contentamento, porém, de ter piscado o olho a um leão.

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Espero que o dilúvio aconteça mais brevemente, pelo menos na minha geração e, que seja de vodka.
Que submirja as Petronas, o Hong Kong Bank, o Monte da Guia em Macau, o belo Empire State Building, os Himalais, mas não a Pousada de Maubisse.
Quero confiar que a pousada terá energia para manter os geradores a funcionar e os frigoríficos a abarrotar de gelo, pelo menos o tempo suficiente para que heroicamente vomite o fígado e o fel latente nas entranhas do meu ser, livrando-me da morte do cobarde sadio abatido pela bala dispersa, actor de um teatro de que não é o autor.

24/5/06 12:01  

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